Arquidiocese de Braga -

21 setembro 2024

Opinião

Construir a Casa de Deus Hoje: Reflexões da 18.ª Jornada Nacional (1ª parte)

Cón. Eduardo Duque

Cón. Eduardo Duque

A relação entre a Igreja e a Arquitetura foi o tema que marcou a 18.ª Jornada Nacional da Pastoral da Cultura, intitulada “Edificar hoje a casa de Deus na cidade terrena”, que decorreu em Fátima, no passado sábado, dia 14 de setembro. Este encontro propôs-se a refletir sobre os desafios e oportunidades da arquitetura religiosa contemporânea, numa Igreja em transformação. A relação entre o sagrado e o espaço arquitetónico, desde o Movimento de Renovação de Arte Religiosa (MRAR) até aos nossos dias, foi objeto de debate tendo por base a forma como se constrói, hoje, a “casa de Deus”.

O diálogo entre a espiritualidade e a arquitetura é antigo. Já no Renascimento, Goethe afirmava que “a arquitetura é música congelada”, uma expressão que ressoa com a ideia de que a construção de espaços sagrados não deve ser apenas funcional, mas também capaz de elevar o espírito humano. A viagem espiritual, que tem tanto de físico quanto de metafísico, é frequentemente vista como uma metáfora para o processo de criação de espaços religiosos. Tal como refere Tolentino Mendonça – no seu livro Uma Beleza que nos Pertence, publicado em 2019, p.147 – “a viagem é uma etapa fundamental da descoberta e da construção de nós próprios e do mundo”. Assim, o espaço sagrado deve ser mais do que um local de culto, deve ser um local de transformação e introspeção.

A arquitetura religiosa, desde tempos antigos, tem procurado refletir o transcendente através do uso simbólico de materiais, formas e luz. Para o arquiteto Siza Vieira, distinguido com o Pritzker, considera- do o “Nobel” da arquitetura e cujo trabalho inclui a célebre igreja de Marco de Canaveses, “viajar é como uma prova de fogo, individual ou coletivamente” (em Desenhos de viagem, de 1988, p.13), sugerindo que tanto o arquiteto quanto o peregrino experimentam um processo de descoberta pessoal ao longo do caminho. É este diálogo entre o caminho físico e o espiritual que se reflete na conceção de um templo religioso, onde o percurso se transforma numa peregrinação interior.

Ao abordar esta relação, Tolentino Mendonça (2019, p.148) recorda que “o peregrino conserva alguma coisa do turista” e que o ato de viajar, seja físico ou espiritual, como refere Barrento – no seu livro sobre Goethe, Viagem a Itália, pulica- do em 2016, p.13 –, “é uma busca de si através da contemplação do que está fora de si”. Esta visão ressalta a importância da criação de espaços que favoreçam a reflexão e o encontro, não apenas com Deus, mas também com a comunidade e consigo mesmo.

Assim, a Jornada Nacional da Pastoral da Cultura convidou-nos a refletir sobre como a Igreja, através da arquitetura, pode continuar a oferecer à humanidade esses “lugares de silêncio” e contemplação, onde a arte e a espiritualidade convergem para transformar a vida quotidiana e orientar o espírito para o transcendente. Ao refletirmos sobre a intervenção do professor Seabra Pereira, diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura e que introduziu a Jornada, fomos levados a questionar o papel da arte religiosa ao longo do tempo, não apenas como expressão estética, mas como veículo profundo de significado espiritual. A sua intervenção levou-nos a uma viagem pela evolução da arte religiosa, sublinhando a importância de compreender as suas transformações.

Um dos aspetos mais marcantes foi a referência ao Movimento de Renovação da Arte Religiosa. Este movimento, nascido no rescaldo do pós-guerra, surge como uma tentativa de responder aos desafios do seu tempo, contestando as formas tradicionais de arquitetura sacra, onde fomos convocados a pensar sobre a tensão entre a tradição e a inovação – uma dualidade que, por vezes, parece opor-se, mas que, noutras, encontra harmonia naquilo que Seabra Pereira designa como a “tradição do novo”.

Mas o que significa inovar na arte religiosa? Qual o lugar da inovação num campo tantas vezes associado ao imutável? Seabra Pereira falou de “estéticas de identificação” e “estéticas de contraposição”, dois polos de uma mesma discussão: será que a arte deve preservar o conforto do que já conhecemos, ou desafiar-nos com novas for- mas que nos confrontam com o inexplorado? E como pode a arte encontrar este equilíbrio entre preservar o passado e abraçar o futuro?

Outra reflexão provoca- da pelas suas palavras prende-se com a ideia da arte como um “apetrechamento para viver”. Mais do que uma mera contemplação, a arte religiosa é vista como uma ferramenta para a vivência da fé. Aqui, surge-nos a interrogação: de que forma a arte religiosa, muitas vezes enraizada no passado, pode ser relevante para a vida quotidiana dos crentes de hoje? Será que a inovação, a par da tradição, pode torná-la mais próxima, mais acessível, mais útil?

A reflexão torna-se ainda mais profunda quando o professor menciona a arte como uma “escrita do eu” e um “exercício de auto-hospitalidade”. Se a arte pode, de facto, ser um meio de autoconhecimento, como é que ela nos ajuda a acolher o nosso próprio ser? Este convite à introspeção sugere que a criação e a fruição da arte nos oferecem a possibilidade de nos compreendermos melhor, talvez até de nos reconciliarmos com partes de nós mesmos.

Por fim, esta introdução à Jornada levou-nos a pensar na necessidade de uma arte religiosa que promova a hospitalidade, que nos guie na procura de uma “vida boa”, como referia o filósofo Paul Ricoeur. Aqui, o apelo não é apenas para uma renovação estética, mas para uma renovação que nos leve a refletir sobre a pertinência da arte religiosa, no contexto atual, como uma prática de acolhimento, tanto do outro como de nós próprios.

Estas palavras, longe de nos fornecerem respostas definitivas, convidam-nos a refletir e a dialogar com a tradição e com a inovação, e a procurar, talvez, novos caminhos para a arte religiosa na contemporaneidade. Após uma introdução envolvente do prof. Seabra Pereira, iniciou-se a partilha do arquiteto Bernardo Miranda. O que ali se desenrolou não foi apenas uma exposição técnica, mas antes uma profunda meditação sobre o entrelaçamento da arquitetura e da espiritualidade, onde o traço físico e o espiritual se tocam, dando lugar a uma unidade indissolúvel.

O arquiteto iniciou a sua reflexão com uma visão pessoal do que apelida “o todo indivisível”, para designar Deus. Esta noção ecoa em cada um dos seus projetos, manifestando-se numa
procura contínua por aquilo que transcende o visível e o compreensível. Ele convidou-nos, implicitamente, a refletir sobre o modo como o divino não é apenas um conceito longínquo, mas uma presença constante que permeia todas as coisas.

Ao partilhar a sua visão enquanto cristão, Bernardo falou de um sentimento de pertença à Igreja, ainda que atravessado por dúvidas e frustrações. O que o mantém ligado, segundo as suas palavras, é a figura de Jesus, não apenas como um símbolo de fé, mas como a expressão mais autêntica e humana da divindade. Nesse contexto, a sua admiração pela humanidade
de Cristo torna-se visível na forma como ele concebe os espaços que projeta: lugares onde o gesto simples, como o partir do pão, adquire uma dimensão quase transcendente.

A arquitetura, para Bernardo, surge como uma ponte entre o humano e o divino. Não se trata apenas de erguer edifícios, mas de criar espaços que facilitem encontros espirituais. Quando fala da disposição do altar no centro, fá-lo como quem sugere uma forma simbólica de aproximar o mistério da fé de quem o celebra, criando um ambiente onde a comunhão se torna visível.

No entanto, talvez a dimensão mais contemplativa da sua intervenção tenha sido quando abordou a importância do silêncio e do vazio na arquitetura religiosa. Aqui, não se trata de austeridade, mas de criar espaços onde o essencial possa emergir, onde o ser humano, despido de distrações, se encontre com o divino. A simplicidade torna-se, assim, uma via para o acolhimento, uma forma de criar espaços que, pela sua natureza despojada, oferecem repouso e reflexão.

As imagens que Bernardo partilhou, retratos de capelas e igrejas que desenhou ou estudou, conduziram-nos para essa dimensão sensível e simbólica do espaço sagrado. Cada detalhe
arquitetónico que mostrou parecia convocar uma experiência mais profunda, onde o espaço físico serve não apenas para congregar, mas para intensificar a relação entre o humano e o divino.

A certa altura, o arquiteto questionou a tensão entre a tradição e a modernidade na arquitetura religiosa. A sua resposta é clara: a Igreja, enquanto espaço físico e espiritual, pode e deve evoluir com o tempo, mantendo sempre a sua essência viva. Mas será que conseguimos, como ele sugere, captar essa essência no diálogo com o presente? A referência a uma capela construída com materiais simples, inspirada pelos abrigos de refugiados, propôs-nos essa interrogação.

Mais do que uma lição de arquitetura, o que Bernardo Miranda nos ofereceu foi uma meditação sobre o poder transformador dos espaços que habitamos. Através da sua experiência, convida-nos a pensar a arquitetura não apenas como um espaço físico, mas como um lugar onde o sagrado se pode revelar de forma simples e acessível, permitindo que, em cada detalhe, a presença divina se manifeste.

Na conferência intitulada “Arquitetura religiosa e esplendor na lentidão”, o Cón. João Félix, Doutor em Liturgia, propôs uma reflexão que nos convida a reconsiderar a relação entre a arquitetura, a espiritualidade e a vivência comunitária, especialmente no contexto dos espaços sagrados. A sua abordagem, em nosso entender, partiu de uma ideia simples, mas profunda: a beleza não reside apenas nas formas e estruturas que compõem uma obra, mas no modo como o nosso olhar a contempla. Ao sublinhar essa dimensão subjetiva e espiritual, somos desafiados a questionar a nossa própria relação com os espaços que habitamos e, sobretudo, com aqueles que transcendemos.

No decorrer da sua intervenção, o Cón. Félix apresentou três notas deste cruzamento entre o sagrado e o espaço físico. A primeira nota, intitulada A edificação e a ruína luminosa, levou-nos a refletir sobre o aparente paradoxo da ruína. É inegável que muitas das igrejas que outrora floresceram estão agora ao abandono, reflexo de mudanças demográficas e económicas. No entanto, o Cón. Joaquim desafia-nos a olhar para estas ruínas não como meros vestígios de decadência, mas como testemunhos luminosos de uma espiritualidade que, apesar de silenciada, continua presente. Estas ruínas são, porventura, portadoras de uma memória que ressoa no silêncio, oferecendo-nos a oportunidade de redescobrir o sagrado em espaços que julgávamos perdidos.

Na segunda nota, o esvaziamento das igrejas e os desafios à sua adaptação, o Cón. Joaquim abordou uma realidade sociológica que temos vindo a explorar nos nossos textos e que é profundamente inquietante: as igrejas estão cada vez mais vazias. A pandemia e a popularização das missas online acentuaram um fenómeno que já se vinha a manifestar há décadas.
Este esvaziamento levanta questões sobre como estes espaços podem ser ressignificados, sem perder a sua essência espiritual. Talvez a solução passe por uma reconfiguração do espaço, onde a proximidade física reflita uma maior proximidade entre os fiéis. Não se trata apenas de reorganizar bancos ou altares, mas de criar uma atmosfera onde a espiritualidade se torne tangível, mesmo em tempos de dispersão.

Por fim, a terceira nota, Arquitetura imprevista e quase esquecida, convida-nos a redescobrir o valor do esquecido. Quantos espaços em ruína ou desuso podem ser revitalizados, dando lugar a novas formas de espiritualidade? A criatividade, sugere o conferencista, pode ser a chave para transformar o que parecia perdido em algo novo, sem romper com a tradição. A intersecção entre o antigo e o moderno, entre o que já foi e o que está por vir, pode abrir portas para uma arquitetura que seja simultaneamente contemporânea e atemporal.

Ao longo da conferência, pairou uma ideia central: a arquitetura religiosa, na sua essência, não é apenas uma questão de pedra e cal, mas uma ponte para o transcendente. O uso de materiais ecológicos, a valorização da luz natural, são formas de integrar o sagrado com a natureza, criando espaços onde o divino se possa manifestar de maneira silenciosa, mas palpável. Esta reflexão desafia a pensar-se a arquitetura não apenas como algo funcional, mas como um meio de criar experiências que toquem o espírito e enriqueçam a nossa vida interior.

Em última análise, o Cón. Joaquim Félix convidou a repensar o modo como se concebe e habita os espaços sagrados. Talvez a verdadeira transformação passe por redescobrirmos o valor da lentidão, do silêncio e da presença, numa época em que o ruído e a rapidez parecem dominar. A arquitetura religiosa, nesse sentido, torna-se uma metáfora da própria espiritualidade: um convite a abrandar, a contemplar e a estar.