Arquidiocese de Braga -

21 setembro 2024

Construir a Casa de Deus Hoje: Reflexões da 18.ª Jornada Nacional (2ª parte)

Fotografia Foto Agência ECCLESIA/PR

Cón. Eduardo Duque

A tarde da Jornada iniciou-se com a apresentação do Doutor Marco Daniel Duarte, especialista em História da Arte, que refletiu sobre o papel da arquitetura religiosa e a sua relação com a comunidade crente no mundo contemporâneo.

Duarte abordou as tensões entre o presente e a tradição, entre a conceção dos espaços sagrados e a forma como são habitados pela comunidade. Estas tensões convidam-nos a repensar as nossas ideias de Deus e da humanidade, especialmente num período marcado por intensos debates sobre a modernidade.

Citando o Papa Bento XVI, Duarte salientou que “a cultura reflete uma tensão que por vezes toma formas de conflito entre o presente e a tradição”. Esta afirmação aplica-se também à arquitetura religiosa, levantando questões sobre se as igrejas que construímos hoje representam verdadeiramente a Igreja viva.

Os exemplos apresentados revelaram como a arquitetura religiosa tem sido objeto de “transfiguração” ao longo dos tempos, adaptando-se às necessidades de cada época. Contudo, esta adaptação nem sempre é pacífica, evidenciando uma tensão entre tradição e inovação. 

A reflexão de Duarte sublinha a importância de construir uma Igreja acolhedora para todos, capaz de testemunhar a presença de Deus no mundo atual. Ao abraçar o dinamismo do Espírito, podemos transformar estas tensões em oportunidades de renovação, edificando uma casa de Deus que responda aos anseios da humanidade contemporânea.

Na segunda conferência, o padre jesuíta e arquiteto João Norton de Matos, através de uma intervenção em vídeo, lançou uma questão provocadora: setenta anos após o Concílio Vaticano II, num mundo marcado pelo pluralismo e pela secularização, que lugar ocupa a arquitetura religiosa na nossa sociedade? Norton convidou-nos a imaginar as igrejas como pontes entre o divino e o humano, entre a tradição e a contemporaneidade. Propôs que as víssemos como organismos vivos, em constante evolução, simultaneamente espaços de recolhimento e portas abertas para o mundo.

O orador salientou a importância da qualidade arquitetónica, questionando como conciliar o respeito pelo património histórico com as necessidades espirituais atuais. Levantou ainda a questão de como integrar as novas tipologias resultantes da reforma litúrgica sem perder o sentido do sagrado.

Norton sugeriu que a resposta poderia estar na compreensão profunda do simbolismo e da espiritualidade inerentes a estes espaços. Se o sagrado se deslocou do templo para a comunidade reunida, não deverá a arquitetura refletir esta mudança?

Três elementos emergiram como essenciais: o acolhimento humano, a inteligência do real e a abertura à transcendência. Estes seriam os pilares para construir espaços litúrgicos verdadeiramente significativos para o nosso tempo.

A visão de Norton incitou-nos a reconsiderar a arquitetura religiosa como um reflexo da vida espiritual e comunitária da Igreja, levando-nos a questionar: que forma assumirá a casa de Deus na cidade terrena do século XXI?

João Luís Marques, arquiteto, ofereceu uma perspetiva sobre a evolução da arquitetura religiosa nas cidades portuguesas. A sua intervenção levou-nos a refletir sobre as transformações significativas na conceção e construção de espaços sagrados ao longo do século XX e início do século XXI.

Um dos aspetos que mais nos marcou foi a importância dada à análise urbana na planificação de novas igrejas. Em vez de se aplicarem soluções padronizadas, tornou-se essencial compreender as especificidades de cada comunidade e do tecido urbano envolvente. Esta abordagem resultou numa evolução significativa da arquitetura religiosa: os edifícios passaram de isolados e monumentais para estruturas mais integradas no ambiente urbano e nas comunidades que servem.

A multifuncionalidade emergiu como uma tendência importante nesta evolução. É interessante notar como os espaços religiosos começaram a ser concebidos não apenas para o culto, mas também para servir as necessidades sociais e culturais das comunidades. Esta mudança reflete uma compreensão mais ampla do papel da Igreja na sociedade, estendendo-se além da sua função estritamente religiosa.

No final da reflexão sobre o papel atual da Igreja na cidade, João Luís Marques revelou uma mudança significativa do mesmo, passando de uma posição de destaque físico e simbólico para uma posição de serviço e integração na comunidade. Esta transformação reflete uma compreensão mais profunda da missão da Igreja no mundo contemporâneo, enfatizando a sua função social e comunitária. 

Através de exemplos concretos de igrejas e projetos urbanísticos em Portugal, especialmente em Lisboa e no Porto, pudemos visualizar como a arquitetura religiosa evoluiu em resposta às mudanças sociais, culturais e urbanas. 

A Jornada encerrou com a intervenção de Rosário Correia Machado, Diretora dos Serviços Culturais do Município de Amarante, que refletiu sobre “A visão de um Mestre (Siza Vieira) e a tradição de arquitetura religiosa em Portugal”.

Rosário propôs uma análise através de três perspetivas fundamentais: o lugar, o tempo e a forma, conceitos essenciais tanto na tradição arquitetónica religiosa portuguesa como na obra de Siza Vieira.

O “lugar”, transcendendo o espaço físico, interage com a arquitetura. O “tempo” surge como elemento intrínseco à compreensão da arquitetura religiosa, refletindo transformações históricas e a responsabilidade de preservar a memória coletiva. A “forma”, na obra de Siza Vieira, resulta de um processo introspetivo que combina lugar e tempo.

A oradora enfatizou como o arquiteto utiliza a luz, os materiais e as proporções para criar espaços que transcendem a função utilitária, promovendo a introspeção e a espiritualidade. Apresentou projetos emblemáticos como a Igreja de Santa Maria em Marco de Canaveses, a Capela da Quinta de Santo Ovídio e a Capela do Monte em Lagos. Esta reflexão iluminou a
abordagem singular de Siza Vieira na arquitetura religiosa em Portugal. O respeito pelo lugar, a consideração pelo tempo e a inovação na forma resultam em espaços que vão além da função física, criando ambientes que acolhem, inspiram e permitem uma experiência espiritual autêntica e pessoal.

O dia terminou com a intervenção do Presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais, D. Nuno Brás, que convidou os presentes a refletirem sobre os desafios que o cristianismo enfrenta na atualidade, especialmente no que diz respeito à arte e à arquitetura religiosa. D. Nuno Brás partilhou uma visão que nos interpela a repensar a presença da Igreja no mundo contemporâneo, ao lembrar o mistério da nossa fé: o Deus que se faz carne que, sem deixar de ser Deus, se torna tangível e próximo de cada um de nós. Este paradoxo, que é ao mesmo tempo um drama e um desafio, exige de nós uma constante reinvenção da forma como vivemos e expressamos a nossa espiritualidade no seio da sociedade moderna.

O artista é aquele que, melhor do que ninguém, pode expressar este Deus que se fez tangível.

A partir desta premissa, D. Nuno Brás deixou algumas questões que merecem a nossa reflexão: como se pode garantir que as nossas igrejas não se tornem “paredes mudas” que nada dizem a quem a elas acorre? Como se pode criar espaços que sejam ao mesmo tempo refúgio e ponte para as pessoas? Mesmo que as igrejas estejam vazias, o mundo interior das pessoas está em constante mudança e é crucial que a arquitetura dos nossos templos continue a interpelar!

Em jeito de conclusão, podemos dizer que esta 18.ª Jornada da Pastoral da Cultura convidou-nos a reconhecer que, do ponto de vista sociológico, a sociedade atravessa uma profunda transformação e que a Igreja necessita de descobrir novas formas de presença e ação no mundo. Não se trata apenas de erigir novos edifícios, mas sim de edificar comunidades vivas que se manifestem através da beleza, da arte e da capacidade de suscitar uma autêntica experiência do sagrado no quotidiano.

Sentimos que esta Jornada lançou um apelo vigoroso para que toda a comunidade colabore de forma sinodal na criação de espaços que reflitam a profundidade do mistério e que continuem a interpelar o ser humano contemporâneo. Assim, o espaço religioso assume-se não só como expressão física da fé, mas também como catalisador de uma reflexão espiritual mais ampla e inclusiva que, do ponto de vista estético e sociológico, nos fascina profundamente.

In Diário do Minho 21/09/2024