Arquidiocese de Braga -

14 abril 2021

Partilha e uso social dos bens: puro e simples Cristianismo

Fotografia DR

DACS com Avvenire

Artigo da Irmã Alessandra Smerilli, publicado no Avvenire.

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“Ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas entre eles tudo era comum.” Comentando essa passagem dos Actos dos Apóstolos, o Papa Francisco ergueu os olhos do papel e, mais uma vez, reiterou: isso “não é comunismo, é cristianismo em estado puro”. 

Na primeira comunidade cristã, partindo da experiência do Ressuscitado, os cristãos viviam em unidade de corações e espírito e partilhavam o que possuíam. Uma das constantes do magistério de Francisco, a partir da exortação Evangelii Gaudium, é tentar fundamentar as nossas ações, principalmente as pastorais, no frescor do Evangelho. E as suas palavras costumam ter uma força impressionante, recebendo grande atenção dos media. Surgem como uma grande novidade, embora na realidade sejam verdades que acompanham a história da Igreja. A franqueza e o vigor com que são proclamados é que são novos. Sine glossa, um pouco como o propósito do Santo cujo nome o Papa carrega. 

Francisco também se deteve sobre esses temas numa audiência em Setembro passado, um ciclo de catequeses em que procurou ler os princípios da Doutrina Social da Igreja à luz da pandemia. Na catequese sobre o destino universal dos bens, retomando o Catecismo, lembra-nos que a terra foi dada por Deus “a todo o género humano” (2402). Isso compromete-nos a fazer com que os seus frutos cheguem a todos.

Mas o Concílio Vaticano II também aponta na mesma direcção: “Por esta razão, quem usa desses bens, não deve considerar as coisas exteriores que legitimamente possui só como próprias, mas também como comuns, no sentido de que possam beneficiar não só a si mas também aos outros” (Gaudium et Spes, 69, 9)

O princípio subjacente é o destino universal dos bens: quando a posse impede que os bens cheguem a todos, deve-se por remédio. Também no Catecismo lemos: "A autoridade política tem o direito e o dever de regular, em função do bem comum, o exercício legítimo do direito de propriedade" (2406)

Propositadamente não são aqui citadas a Laudato Si' ou a Fratelli Tutti, encíclicas de Francisco, justamente para mostrar que a subordinação da propriedade privada ao destino universal dos bens é um princípio que acompanha a Igreja desde os Actos dos Apóstolos até ao Concílio Vaticano II e mais além. O Papa tem a coragem de recordar isso a um mundo que parece adormecido e inerte perante as crescentes desigualdades.

Por um lado, a atenção dos media faz-nos pensar que estamos a ouvir a palavra que é necessária. Por outro lado, o desejo de descartar essas mesmas palavras como sendo associáveis ao comunismo “derrotado pela história” talvez nos fale da tentativa de procurar um pretexto para acabar com verdades inconvenientes.

A Covid-19 está a trazer à tona as contradições de um sistema que gera desigualdades crescentes. Se, segundo dados da Oxfam, o aumento da riqueza dos 10 bilionários mais ricos do mundo desde o início da pandemia seria suficiente para reverter os efeitos económicos da crise nos mais pobres e garantir as vacinas em todo o mundo, este sistema não funciona. O pacto social, diante dessas evidências, desmorona. Porque é que, diante de um evento externo inesperado, quem trabalha num determinado sector é penalizado e corre o risco de perder a casa por não conseguir pagar as dívidas, e quem trabalha noutros sectores vê os seus ganhos aumentarem, e muito? É este o mundo que queremos? Onde nascer num lugar em vez de outro pode determinar oportunidades completamente diferentes, onde, diante de um mal comum, as consequências para os indivíduos são bem diferentes?

O Papa repete que, precisamente perante um flagelo mundial como a pandemia, é bom deixar claro que a terra é de todos, que os bens nos foram dados para serem partilhados, que não podemos chamar-nos de cristãos se não nos sentimos verdadeiramente guardiões uns dos outros.

 

Artigo da Irmã Alessandra Smerilli, publicado no Avvenire, a 13 de Abril de 2021.