Arquidiocese de Braga -
25 julho 2022
Estar plenamente vivo é esperar e perdoar
DACS com The Tablet
Artigo do Pe. Timothy Radcliffe OP.
Estar plenamente vivo é ser capaz de ter esperança e perdoar. A Eucaristia é uma expressão audaciosa de esperança no desafio de um mundo que parece empenhado na sua destruição. Mas para viver plenamente com esperança agora, neste tempo de desgraça, também precisamos de perdoar. Começamos cada Eucaristia a lembrar os nossos pecados e a pedir perdão. Esta é uma maneira estranha de começar uma celebração! O cálice abençoado na Última Ceia foi “a nova e eterna aliança derramada por vós e por muitos para remissão dos pecados”. Aproximando-se do clímax, vemos o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. O Judaísmo e o Islamismo acreditam num Deus misericordioso, mas o Cristianismo é único por ter o perdão no seu coração.
Mas aqui chegamos a uma dificuldade. Muitos jovens não são atraídos por uma religião que fala sem parar sobre o pecado. As pessoas não querem vir à igreja para ouvir que são pecadoras terríveis e que precisam de perdão. Parece esmagador e deprimente. A vida já é suficientemente dura sem que me digam constantemente que sou um pecador. É como se primeiro fosse preciso convencer as pessoas de que as suas roupas estão sujas para que elas comprem a sua marca de sabão em pó. É por isso que, quando prego, quase nunca uso a palavra “pecado”.
As pessoas muitas vezes afirmam que os jovens perderam o sentido de pecado. Mas isso é um erro. Mudou. Existe uma maneira totalmente nova de entender o pecado. De facto, os jovens têm um idealismo moral muito elevado. São muito mais gentis e tolerantes do que a minha geração alguma vez foi. Há um profundo sentido de igualdade de todas as mulheres e homens. O preconceito contra as pessoas por causa da sua cor ou orientação sexual é abominável. Há uma percepção aguda do dano que estamos a causar ao meio ambiente e do horror do abuso sexual.
Mas esse idealismo pode ser esmagador. Como podemos suportar esses ideais se não há perdão para todos os nossos fracassos? O falecido cardeal Francis George, arcebispo de Chicago, escreveu uma vez que no mundo de hoje “… enquanto praticamente tudo é permitido, praticamente nada é perdoado”. A atmosfera está carregada de acusações. O mundo está dividido em vítimas e perpetradores. Um único erro, um momento de loucura, ficará registado para sempre. As redes sociais não esquecem nada. Somos apontados por uma qualquer associação com os erros dos nossos ancestrais. Estátuas são derrubadas, escolas, prédios e estradas são renomeados. Ex-heróis como Mahatma Gandhi e Aung San Su Kyi são denunciados como vilões. Devemos ser puros, imaculados, incontaminados.
Esta é a “espiral de pureza”. As pessoas trabalham cada vez mais para se desassociarem do impuro, do ofensivo. Assim, os nossos jovens estão sobrecarregados com o fracasso em alcançar a perfeição moral e, muitas vezes, não têm nenhuma concepção de perdão. E a autoridade da Igreja para pregar o perdão está profundamente comprometida pela crise dos abusos sexuais. Quem somos nós para dizer a outras pessoas que os pecados devem ser perdoados? Como ousamos fazê-lo?
Quando alguém se torna um dominicano, deita-se no chão com as suas roupas e o superior provincial pergunta-lhe: “O que procura?”. E ele responde: “A misericórdia de Deus e a sua”. Pede para se juntar a uma comunidade fundada na misericórdia. No centro da sua formação está aprender o que significa dar e receber misericórdia. Isso não significa esquecer – “Ah, lamento muito por ter assassinado o director”; “Ah, todos nos deixamos levar. Vamos esquecer isso”. Perdoar significa algo muito diferente.
Há apenas um grande acto de perdão, e esse é o Domingo de Páscoa. Na Sexta-Feira Santa colocamos o Amor Incarnado numa cruz. Rejeitámos o Deus que é amor. A cruz foi um acto de destruição estéril, sem vida e sem sentido. Mas no Domingo de Páscoa, Jesus encontrou Maria Madalena num jardim. Esta foi a Primavera irreprimível de Deus. A madeira morta da cruz deu flores. Nesse momento, tudo é perdoado. Não precisamos de esquecer.
Deixem-me dar apenas dois exemplos, ambos amigos dominicanos. Pierre Claverie era um dominicano francês, bispo na Argélia. Pierre dedicou toda a sua vida ao diálogo com o Islão. Quando aquele país adorável foi tomado por uma violência louca na década de 1990, ele sabia que era provável ser assassinado, como os monges trapistas retratados no filme “Homens e Deuses” (de Xavier Beauvois, 2010). Um dia voltou a Oran, onde era bispo, de um encontro em Argel. Os terroristas estavam à sua espera. Entrou em sua casa com um jovem amigo muçulmano que o tinha apanhado no aeroporto. Uma bomba explodiu e os seus corpos foram pulverizados. Quando cheguei ao funeral, três dias depois, encontrei uma Irmã ainda a recolher restos mortais com uma colher. A destruição brutal de dois amigos, um cristão, um muçulmano.
Mil muçulmanos foram ao funeral de Pierre. No fim, uma jovem muçulmana levantou-se e disse que tinha deixado a sua fé, mas que Pierre a tinha trazido de volta. Era o bispo dos muçulmanos também. Todos na congregação começaram a dizer também: era o bispo dos muçulmanos. Quando fui a Oran para a sua beatificação, encontrei o seu túmulo coberto de flores deixadas por peregrinos muçulmanos e cristãos. Essa é a fertilidade do perdão, não do esquecimento. Isaías proclamou: “O deserto e a terra árida vão alegrar-se, a estepe exultará e dará flores belas como narcisos... o coxo saltará como um veado, e a língua do mudo dará gritos de alegria; porque as águas jorraram no deserto e as torrentes na estepe.” (Isaías 35: 1; 6).
Outro exemplo, de outra amiga. A irmã dominicana Pauline Quinn nasceu numa família rica não-cristã em Hollywood, mas sofreu um terrível abuso sexual. Foi enviada para muitas instituições onde foi violada repetidamente, incluindo pelos médicos. Começou a auto-mutilar-se. Os seus braços estavam cobertos de cicatrizes. Tornou-se mendiga, vivendo nas ruas durante muitos anos. E então conheceu uma irmã católica, e também um cão, um pastor alemão chamado Joni. Deram-lhe segurança e carinho pela primeira vez. Foi recebida na Igreja até que foi aceite como Irmã dominicana. A sua vida tornou-se maravilhosamente frutífera. Trabalhou com vítimas de guerra de todo o mundo, permitindo-lhes ter membros prostéticos, encontrando-lhes empregos. Trabalhou com reclusos, formando-os para treinar cães para ajudar pessoas com deficiência. A graça triunfou sobre a feiura do pecado, e a sua vida tornou-se bela. Morreu de cancro há dois anos.
Às vezes, a primavera do perdão demora muito a chegar. Não se pode forçar. Vemos isso especialmente com o perdão por abuso sexual. Rezamos todos os dias: “Perdoai os nossos pecados assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”, mas não podemos exigir que as outras pessoas perdoem. Seria outra forma de abuso. Quando as pessoas estão perdidas no que Stephen Cherry chama de “o deserto da dor”, devem ter tempo para que o perdão surja. As feridas de décadas, mesmo séculos, não podem ser curadas ao nosso comando, assim como os nossos corpos feridos. O meu cirurgião diz-me que levará 18 meses para as feridas da minha última operação para remover um tumor cancerígeno curarem completamente. Pensem no tempo que será necessário antes que o povo ucraniano seja capaz de começar a contemplar o perdão daqueles que estão a causar agora o seu terrível sofrimento. O perdão é inseparável da paciência.
Portanto, tornarmo-nos pessoas que perdoam não é esquecer. É abrir a porta para a graça criativa de Deus. É inseparável de aprender a falar com a outra pessoa que o feriu. Descongelar o mar; abrir o caminho para palavras de cura; deixar o deserto estéril da dor ser tocado pela primavera.
Devemos lembrar-nos que nem quem é ferido, nem aquele que fere, é definido pelo acto. Não devem ficar presos aos rótulos de “vítima” e “perpetrador” para sempre. Há uma fraternidade de leigos dominicanos nos Estados Unidos cujos membros são principalmente pessoas presas por assassínio. Podem ter cometido homicídios, mas não estão presos para sempre pela definição de “assassinos”. Adorei conhecer um velho assassino da máfia que tinha matado muita gente, mas que agora recita o seu breviário. Ele disse-me que se sentia como uma freira dominicana enclausurada. Tenho orgulho por ele ser meu irmão.
Partilhamos a nossa fé explicitamente por palavras ou implicitamente pelo modo como vivemos. Acreditamos que a nossa fé é verdadeira, e os seres humanos só podem prosperar no ar puro da verdade. O Senhor da verdade convoca-nos a viver agora. E fazemos isso deixando de lado o fardo do passado e abrindo-nos à promessa do futuro. Se isto nos liberta para viver, as pessoas podem perguntar porquê. Podemos até estar um pouco em chamas, como a sarça ardente que Moisés viu. Na altura, ele disse: “O que está a acontecer aqui? Vamos ver!”.
Artigo do Pe. Timothy Radcliffe OP, publicado no The Tablet a 19 de Julho de 2022.
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