Arquidiocese de Braga -

28 julho 2023

“A missão é um lugar onde procuramos descansar um pouco o coração”: Olhares plurais sobre o projeto Salama

Fotografia O Conquistador

O Conquistador

Reportagem, fotos e texto: António Magalhães e Maria Elvira Magalhães

\n

Em 11 de dezembro do ano transacto, D. José Cordeiro, arcebispo primaz de Braga, iniciou uma visita à diocese de Pemba, no nordeste de Moçambique, e particularmente à paróquia de Santa Cecília de Ocua, marcando de forma mui to clara a importância que a Igreja bracarense atribui àquela que é considerada a sua paróquia 552. Esta visita integrou-se numa caminhada que vem sendo feita desde 2003, quando a Diocese de Braga enviou dois sacerdotes para a congénere de Pemba, no âmbito de um acordo celebrado com a Sociedade Missionária da Boa Nova.

Agora que está próxima a partida de mais uma equipa missionária, quisemos falar com homens e mulheres cujas vidas estão fortemente ligadas à missão. Era nosso objetivo perceber, daqueles que aguardam a partida, quais as motivações mais fortes que os levavam a uma mudança tão radical, de que modo se prepararam e quais as expectativas que transportavam. Quisemos igualmente recolher o testemunho de quem por lá passou e de que modo essa experiência é hoje avaliada, alguns anos depois desse tempo de ação num território tão diferente da terra de origem. De igual modo também quisemos recolher o depoimento de um padre diocesano acabado de regressar de Ocua e já a preparar-se para um novo período de missão. Estes eram os testemunhos de quem iria trabalhar, ou trabalhou, localmente. Contudo, importava igualmente ouvir quem na retaguarda desenvolve um trabalho muito importante na divulgação dos projetos que vêm sendo realizados em Ocua e no suporte que se disponibiliza a homens e mulheres que, altruisticamente, dispõem de um tempo das suas vidas para o trabalho missionário em territórios tão longínquos da sua terra de origem e num contexto cultural muito diferente.

“O projeto Salama permite concretizar o fervor missionário da diocese, uma forma próxima de viver a missão através da paróquia de Ocua”

Não oferecerá dúvidas a ninguém que o sucesso de uma missão também depende do apoio de retaguarda, procurando fornecer a quem parte as necessárias condições para que os objetivos sejam alcançados. Na diocese de Braga essas funções estão acometidas ao CMAB – Centro Missionário Arquidiocesano de Braga, pelo que importava perceber quais as principais iniciativas desenvolvidas e de que modo se processava essa articulação com quem estava no terreno. Para esse efeito falámos com Sara Poças, uma das responsáveis e com uma larga experiência em cooperação para o desenvolvimento, que nos fez uma detalhada apresentação não só dos projetos em curso, mas igualmente de toda a experiência que tem sido o projeto Salama. Como nos referiu, trata-se de um longo caminho que vem sendo percorrido desde 2010, na sequência da publicação de um documento da CEP - Conferência Episcopal Portuguesa que apontava para a necessidade de todas as dioceses terem um centro missionário, que, como nos explicou, funciona como “uma plataforma ao nível da diocese em que se integram leigos e sacerdotes que tenham feito missões e também os elementos de congregações missionárias”. A realização de eventos sobre temáticas missionárias é uma das funções do CMAB, destacando-se o “outubro missionário”, um mês dedicado às missões, celebrado todos os anos num arciprestado. Como nos referiu, importa avaliar as condições concretas em que o evento acontece e assim “procurámos conhecer como funciona o arciprestado porque, na verdade, não temos um plano que se possa implementar de igual modo em todos. Dentro das dinâmicas dos arciprestados procuramos encaixar o que faz sentido para cada um. Geralmente propomos a celebração de uma vigília missionária, cursos de missiologia, sempre que possível, e semanas missionárias nas paróquias, mas sempre de acordo com as suas dinâmicas.”

No trabalho desenvolvido pelo CMAB, o projeto Salama é uma das realizações a que conferem maior atenção, funcionando igualmente como um meio para “concretizar o fervor missionário da diocese, uma forma próxima de viver a missão através da paróquia de Ocua”. Pretende-se que as pessoas “se envolvam afetivamente com este projeto, que trabalhem este lado missionário, sabendo que estão a trabalhar com esta paróquia, percebendo o que é o território de missão.” Há uma espécie de dupla dimensão nesse envolvimento missionário, ou seja, procura-se que a Igreja de Braga conheça o trabalho que vem sendo realizado em Ocua e que disponibilize leigos e sacerdotes que possam localmente trabalhar. Sara Poças destacou esta presença lembrando que “anualmente há leigos, leigas e um sacerdote que dão um ano, ou mais, da sua vida para esta missão e isso também ajuda a que as pessoas se envolvam.”

“Este projeto estava sempre a tropeçar em nós ou nós nele”

Explicado o enquadramento geral do projeto missionário da diocese, impunha-se conhecer alguns desses homens e mulheres que, generosamente, dispõem de um tempo importante das suas vidas para a partilha num contexto geográfico e cultural tão diferente deste “mundo ocidental” em que vivemos. Conversámos com alguns procurando resposta para perguntas que pretendíamos ver respondidas como, por exemplo, que razões podem levar um jovem casal a partir quando se tem uma vida estabilizada, exercendo profissões socialmente reconhecidas, suspendendo quiçá a legítima progressão nas suas carreiras? Que motivações profundas poderão justificar a partida para bem longe de casa, para um contexto cultural muito diferente, sem o conforto que atualmente dispõem?

Estas eram algumas das muitas perguntas que mentalmente íamos colocando na viagem que nos levou ao encontro com Ana Margarida Gomes, 35 anos, técnica de análises clínicas e de Hugo Borges, 37 anos, enfermeiro. São casados e ambos trabalham num hospital público. Num final de tarde acederam conversar connosco e a partilhar o que os leva a uma mudança de vida tão radical. “Sempre tivemos planos de vida para fazermos em conjunto uma missão humanitária. A vida foi andando até que surgiu a oportunidade de exercer esse projeto numa missão. Abraçámos essa ideia e fizemos por nos organizarmos familiarmente para o podermos viver”, disse-nos Ana Margarida. Hugo Borges complementa o discurso da esposa, lembrando que “a nossa missão começou desde muito cedo na paróquia, já que desde crianças participamos na paróquia. Fomos catequistas, fizemos parte do grupo de jovens, dos escuteiros, ou seja, sempre tivemos esta noção do serviço.”

Vamos assim compreendendo que esta nova etapa de vida que brevemente os levará até à paróquia de Ocua não resultou apenas de uma decisão devidamente ponderada, mas é consequente a um percurso de vida que, como sugestivamente nos diz Hugo Borges, “este projeto estava sempre a tropeçar em nós ou nós nele”. Ana Margarida dá-nos novos elementos que permitem perceber que houve todo um caminho que foi sendo percorrido e que faz compreender melhor a decisão que tomaram. Como nos disse, “houve várias pessoas que se foram cruzando no nosso caminho, tanto leigos como padres ligados às missões” e, como carinhosamente refere, “as coisas foram-se compondo aos bocadinhos”. Nesta decisão encontra igualmente uma dimensão de “chamamento” pois que, como nos salientou, “eu nunca tinha entendido a lógica do chamamento. Para nós, com uma vida ativa a nível paroquial, esta palavra surge-nos muitas vezes ao longo da vida. Nestes dias dei comigo a pensar nesta entrega como se tivesse sido um chamamento.”

Uma mudança de vida tão radical teve, provavelmente, impacto no círculo das relações deste jovem casal pelo que nos importava perceber de que modo a decisão foi comentada, tanto pelos amigos mais próximos, como pelos colegas de trabalho. Responde-nos Ana Margarida, lembrando que “os amigos, a um nível geral, encararam bem e facilmente entendem esta vontade. Na família foi mais difícil aceitar, sobretudo pela distância, pelo país e pela zona para onde vamos. Falar de Cabo Delgado, não é a mesma coisa que falar de outra zona de Moçambique. Isto causou algum impacto a nível familiar”. Também Hugo Borges se sentiu apoiado, mas ouviu algumas perguntas das pessoas que lhe estão mais próximas sobre as condições que poderiam encontrar na missão. Como nos referiu, “quando se fala em África, as primeiras ideias que as pessoas têm não é a abundância, surgindo igualmente as preocupações com a segurança, tanto alimentar como física.” Olhando para as reações observadas fora do círculo familiar e dos amigos mais próximos, Hugo Borges refere-nos que alguns colegas de trabalho, embora tenham manifestado alguma surpresa, também demonstraram “capacidade de entender o porquê.”

Contudo, não ignorando possíveis dificuldades, dizem ter a seu favor um percurso de algum desprendimento material. A este propósito, Ana Margarida recorda a experiência de ambos no escutismo e que Hugo Borges complementa referindo que “se para viver uma coisa diferente eu tiver de dormir no chão, não será isso que me vai impedir.”

Ouvimos igualmente outro testemunho. De quem já participou numa missão. Davide Duarte, 38 anos, arquiteto, membro do primeiro grupo enviado a Ocua. Recua até esse tempo e refere-nos que a sua ida foi um pouco diferente da maioria dos leigos que viveram idêntica experiência pois que, como ressalta, “na minha vida a missão já acontecia porque pertenço aos Missionários do Verbo Divino, no grupo “Diálogos – Leigos SVD para a missão”, logo este desafio não surge do nada, mas antes como um caminhar; de repente surgiu um projeto diferente que acabei por abraçar.” Neste relembrar das motivações que o levaram a aderir ao projeto Salama, acentua sempre a “naturalidade” com que as diferentes etapas se foram sucedendo. Recorda em defesa desta avaliação as palavras que a sua mãe lhe dirigiu quando chegou a casa, depois da decisão tomada, e sem nada lhe dizer, ela de imediato percebeu “que eu iria. Não sabia que era para Ocua, mas percebeu, face ao meu envolvimento em projetos missionários.”

Estas algumas das motivações que animavam os leigos que se preparavam para partir, mas também o que já regressara há cerca de seis anos. Contudo, queríamos alargar a nossa amostra e nada melhor que procurar o contributo de um padre diocesano com experiência missionária. Falámos com o padre Manuel Faria, recém-chegado de Santa Cecília de Ocua, depois de dois anos de trabalho nessa missão, e já a pensar num próximo regresso. Também nele o apelo para o trabalho missionário não se revestiu de qualquer excecionalidade, vindo antes na continuidade do seu trabalho pastoral. Como nos disse, “muitas vezes há este desafio de sairmos do nosso lugar de conforto, partir os nossos esquemas mentais.” A este propósito lembrou os sucessivos apelos dos últimos Papas e já com o atual Papa Francisco “para os padres diocesanos se abrirem a uma missão, a outras igrejas, a partir para outros lugares.” Remata, salientando: “este desafio encantava-me.” A referência que nos fez à necessidade de “sair da zona de conforto” levou-nos a pedir-lhe que tornasse mais clara essa sua disposição, porquanto não se tratava de um padre jovem, mas de alguém que celebraria as bodas de prata sacerdotais no dia seguinte à nossa conversa. Aceitou o repto e de imediato nos manifestou a sua permanente disponibilidade para aprender. Como salientou, “o que eu entendo da minha missão sacerdotal, desde o primeiro dia, é uma missão de aprendizagem. Neste processo de aprendizagem ainda sou muito jovem porque 25 anos podem parecer muito para uma pessoa, mas em Igreja não são nada. Depois de alguma aprendizagem, de alguma comunhão com este povo, também assumir o risco de encontrar outros povos.”

Com algumas semelhanças com o percurso missionário de Davide Duarte, também o padre Manuel Faria já tinha passado por mais curtas experiências missionárias antes de partir para Ocua. Como nos lembrou, “tinha feito uma pequenina experiência missionária como jovem universitário na Guiné-Bissau e no ano seguinte dois meses em Angola. Assim, conheci um pouco da realidade missionária.”

“O tempo de formação ajuda-nos a abrir fronteiras, a abrir o nosso leque de visão, abertura e encaixe”

Porém, o envio destes homens e mulheres para a paróquia de Ocua não depende somente da vontade de cada um, mas exige um tempo prévio de preparação que, como salienta Sara Poças, “ao longo de um ano fazem uma preparação para se perceber se há uma identificação com o projeto e para se prepararem para o que vão encontrar.” Como destaca, esta presença no terreno assume uma dupla função, isto é, “não apenas a parte pastoral que qualquer paróquia tem, mas também uma componente social muito forte, tendo em conta o contexto em que se encontra.”

A partida para um ambiente tão diferente é assim devidamente avaliada, tanto nos aspetos materiais como na vertente espiritual. Isso mesmo nos disse Ana Margarida, assinalando a importância do curso de preparação que frequentou juntamente com o marido durante seis meses e que “ajudou a perceber qual era o projeto, qual o nosso papel nesta cooperação”, rematando com uma frase muito significativa da certeza que a ambos anima: “agora é a tranquilidade da espera.”

Apesar de sentirmos que ambos estão devidamente preparados para o desafio e mostrarem uma enorme segurança, não deixámos de questioná-los sobre alguns receios que possam sentir, estranhando-lhes que ao longo da nossa conversa nunca tivessem mencionado dificuldades, antes referindo amiúde vezes que iriam encontrar algo de “diferente”. Hugo Borges responde de imediato a esta observação não ignorando “que vai ser difícil, claro que vai custar. Vai custar muito ou pouco? Não sei. Só sei que será diferente!” Também Ana Margarida realça essa imponderabilidade, salientando todavia uma vantagem particular já que, “vamos em casal, o que permite que nos possamos apoiar, ser um porto seguro de um para o outro, como temos sido até agora.”

A importância desse tempo de preparação para o sucesso do trabalho que se pretende desenvolver está bem presente no pensamento de quem se encontra a poucos dias de partir. Importava alargar o nosso campo de observação e igualmente perceber da importância dessa preparação através do testemunho de quem já esteve em missão, sobretudo quando já passaram alguns anos depois dessa experiência. Ouvimos Davide Duarte que, como já se referiu, foi um dos membros da primeira equipa enviada para Ocua em 2017. Seis anos depois, e mesmo vindo de outras experiências missionárias mais curtas, reconhece a importância desse período de preparação porque “há sempre o primeiro contacto com algumas realidades.” Todavia não deixa de avisar que “todos os projetos que levamos na algibeira, lá acabam por ser todos desmontados. Escusamos de levar uma bagagem cheia de atividades para fazer porque chegamos lá e as coisas não são como nós as imaginámos. Temos um confronto com uma realidade diferente e por mais que nos seja passada por palavras e imagens, quando vivida é diferente.” Não obstante este choque entre a teoria e a realidade, não deixa de considerar o período de formação como muito importante pois que “ajuda-nos a abrir fronteiras, a abrir o nosso leque de visão, abertura e encaixe de algumas coisas que vamos ver porque depois este confronto existe e a formação revela-se fundamental na equipa missionária, na abertura para trabalhar com pessoas diferentes, com ideias diferentes e ter a capacidade de encaixe, de escutar uns aos outros.” Concluiu, lembrando que a formação “não nos prepara a 100%, porque a missão é uma caminhada. Vamos sempre aprendendo até… outra missão!”

Lembrando a sua curta experiência em território de missão na Guiné-Bissau e Angola, também o padre Manuel Faria identificava a mesma necessidade de adaptação entre o cenário apresentado no tempo de preparação e a realidade concreta sentida no terreno. “Eu sabia para onde ia, sabia o que poderia encontrar, mas a realidade não só enche as expectativas, mas supera muito”, a que de imediato acrescenta: “eu ia preparado para dar, a minha alegria seria partilhar um bocadinho, mas a minha alegria é o que estou a receber hoje na missão. A aprender a abrir o coração.”

No que se refere a Davide Duarte, as memórias que tem do tempo em que esteve em missão poderiam, no nosso entendimento, caucionar algum conselho ou uma advertência ao casal Hugo Borges e Ana Margarida. Propomos-lhe que eleja algum aspeto a que devem conferir uma atenção especial. Aceita a proposta referindo que “o maior conselho que eu posso dar é aquele que fui recebendo e que, pelo que fui vivendo, considero muito útil: ir e poder estar!” E, sem se deter, acrescenta a importância de que “não nos preocupemos em fazer mil e uma coisas. Eu, como arquiteto não me preocupar com a arquitetura, mas preocupar-me em estar com as pessoas. Isso é o que mais marca; é o que as pessoas mais esperam de nós. Às vezes nem precisamos de estar a conversar, basta olhar.” E reforça: “o estar é importante. Faz-nos sentir bem a nós mesmos e às pessoas que estão connosco.”

A mesma necessidade de respeitar os ritmos próprios da missão foi-nos referida pelo padre Manuel Faria que, como sugestivamente nos dizia, “a missão é um lugar onde nós procuramos descansar um pouco o coração.” Complementa a sua afirmação recorrendo ao desafio de Jesus Cristo que, quando cansados, nos convida a ir até Ele onde encontraremos descanso. Neste entendimento assinala que “encontramos descanso Nele e África permite isso, ou seja, viver mais unidos naquela sintonia da fé com aquele povo, livres de muita perturbação deste meio ocidental onde vivemos.” De imediato estabelece um confronto com o que tem observado nestes dois dias que levava de permanência em Portugal. “Por onde eu passo há ruído, há cartazes: compra, vende, faz. Há trânsito infernal. Imensas propostas a toda a hora. Nós lá não temos nada. Nada!” Todavia, também salienta que o “descansar” deve ser entendido no sentido em que se afasta deste tipo de vida ocidental, já que o trabalho na missão é muito porque, recorrendo mais uma vez a uma imagem bíblica, “a messe do senhor é grande, os trabalhadores são poucos, pelo que temos de ser ágeis e trabalhar pela missão. Lá não dá para descansar.”

“A missão é uma realidade onde existem muitas necessidades”

Tendo presente essa certeza de muito e contínuo trabalho, quisemos avançar um pouco no retrato que procurámos fazer à vida na missão de Ocua. Voltemos a Davide Duarte que, recordemos, é arquiteto de profissão, questionando-o sobre se teve oportunidade de pôr em prática esses conhecimentos ou se pelo contrário o trabalho que desenvolveu implicava outro tipo de saberes. Ainda que numa ou outra ocasião esse conhecimento tivesse alguma utilidade, tratava-se contudo de “uma realidade onde existem muitas necessidades”, como nos disse.

A multiplicidade de desafios que surgem no decorrer do trabalho missionário também foi destacado pelo padre Manuel Faria, lembrando que “no meio de tanta fome e de tanta pobreza, nós damos graças de coração por ter alimento em cada dia.” Ilustra essa pluralidade de situações referindo-nos alguns exemplos das que têm de enfrentar: “há uma “mamã” que precisa de ajuda, há uma nossa missionária que está doente, há um padre que ligou a pedir ajuda, há alguém que vai ter um parto e não pode esperar e a criança poderá morrer se não se levar para o hospital. E não se dorme; não se consegue descansar. Esta realidade acontece-nos muitas vezes e quando parece que não temos mais forças, que estamos cansadíssimos, que já não dá para mais, naquela hora dizemos: seja o que Deus quiser! Passa o cansaço todo e continuamos.”

“O que vou guardando mais de Ocua é a população que encontrei”

Contudo, no meio de tantas solicitações a que é preciso dar resposta, há também o tempo de paragem, do contacto pessoal mais intenso que pode passar simplesmente por estar sentado ao lado do outro. Tempos que permanecem bem vivos nas memórias, mesmo depois de alguns anos decorridos. Tomemos o depoimento de Davide Duarte, que já conhecemos. A nossa conversa decorreu num final de tarde de sexta-feira, num terraço no centro histórico de Guimarães, tendo no horizonte a montanha da Penha e o santuário de Nossa Senhora do Carmo. Pedimos-lhe que partilhasse algumas das mais impressivas memórias quando já passaram seis anos de uma experiência que, assim o julgávamos, teria sido muito marcante. Fica por breves instantes em silêncio como se procurasse rever as imagens principais de um filme vivido. “As memórias são muitas e são estes momentos que nos obrigam a parar para pensar e buscar algumas coisas que nos faz vir alguma nostalgia de coisas vividas. O que vou guardando mais de Ocua é a população que encontrei.” Recorda-nos algumas dessas pessoas que lhe marcaram os dias, aquelas com quem mais trabalhou e, sobretudo, a curiosidade que tinham em conhecer o que muito sugestivamente classifica como sendo “o lado de cá”. Porém, no grupo das pessoas que ainda lhe povoam a memória há outras que merecem uma saudade muito especial no que define como sendo “pessoas concretas”. Neste grupo, entre muitos outros rostos, lembra de imediato “Janeiro, um rapaz portador de uma deficiência que todos os dias aparecia na casa da missão.”

Também o padre Manuel Faria nos lembrou algumas das pessoas que podem assumir essa função de rostos do trabalho que se desenvolve na missão. A propósito da preparação da Jornada Mundial da Juventude, refere-nos o exemplo de um jovem que teve de caminhar cerca de 70 quilómetros para se deslocar da sua aldeia até à sede da paróquia. “Saiu à uma da manhã e por volta das oito horas foi dos primeiros a chegar.”

Pessoas que podem não ter um nome nas memórias que guarda desses tempos em Ocua, mas que se tornam bem vivas em gestos de tremendo significado. Realça as qualidades desse povo, um “povo novo” como muito significativamente classifica. “Sempre que chegamos próximo de uma casa, a primeira atitude deles é puxar de duas ou três cadeiras para fora de casa porque estou eu na missão, tenho um colaborador, Frei António e uma leiga missionária, a “Mana” Fátima, o que leva a que haja três cadeiras para nos sentarmos.” Como nos disse, “é assim que partilhamos a vida daquele povo. Quem está doente, como estão os sucessos da vida, como está a machamba…”

Em Davide Duarte as memórias permanecem bem vivas, mais permanentes nos primeiros tempos do regresso mas que, atualmente, voltam a tornar-se bem fortes quando “uma mensagem, uma publicação me remetem rapidamente para a vivência que tive em Ocua e que muitas vezes me faz pensar que ainda estou lá.”

Já quase no final da nossa conversa, regressou à partilha de algumas das mais impressivas vivências e elege de entre várias o quão marcantes foram as celebrações em que participou, merecendo-lhe especial destaque a do dia 24 de dezembro, ao final da tarde. “Senti-me estremecer, arrepiado. Vivemos uma experiência de Natal completamente diferente. Claro que senti alguma nostalgia daquele momento mais familiar, mas naquela celebração a alegria com que se cantou, por exemplo o “Glória”, foi para mim muito marcante. Ainda hoje dou comigo nas celebrações a revivê-la.” Reforça esse momento único, salientando que “são coisas que não são fáceis de explicar.”

Julgámos identificar no discurso de Davide Duarte uma certa nostalgia desses tempos de missão e, quiçá, uma vontade de repetir a experiência. A resposta veio pronta: “por mim iria já hoje” a que acrescenta: “tenho noção que a vida é diferente e com certeza que arranjarei forma e altura certa para o fazer, mas, por vontade própria, fá-lo-ia já hoje.” Face à partilha que ia fazendo, a conclusão óbvia é de que se tinha tratado de uma experiência muito positiva. Não obstante esta nossa perceção, quisemos ouvir o balanço que fazia. Recorda-nos o que há pouco nos dizia sobre essa vontade de partir de novo, o que era altamente esclarecedor da avaliação que fazia. Contudo, não esquece que “houve algumas adversidades, sendo que o facto de ser a primeira equipa levou a trabalhos que não seriam de esperar numa missão, coisas básicas que tivemos de procurar, mas o balanço é bastante positivo”. E, sem se deter, “aconselho toda a gente a fazer uma experiência deste género. É uma descoberta, é algo que nos põe em contacto com outras realidades, outras pessoas.”

Tomando em linha de conta o balanço que acabava de partilhar, pedimos-lhe que condensasse numa única palavra a experiência desse trabalho em Santa Cecília de Ocua. Escolhe a palavra “vida” e embora sinta que não é “suficientemente caracterizadora”, justifica-a pelo facto de entender que se tratou algo “fazendo parte integrante de uma vida, dado que estou a falar da minha vida, mas também da vida das pessoas com quem eu me encontro.”

A mesma proposta deixámos ao padre Manuel Faria, desafiando-o a condensar numa única palavra a sua experiência na missão, não sem antes lhe referirmos que em sucessivas passagens do seu discurso acentuou a palavra “partilha”. Reconhece a sua importância e do que pretende transmitir, mas complementa-a com uma expressão mais ampla no que entende ser “a experiência sinodal, esta participação, esta comunhão, esta responsabilidade de todos. Quando todos pomos essa palavra a funcionar, a Igreja acontece.”

Já em final de conversa, ainda voltámos à situação da Igreja em Moçambique e do que o padre Manuel Faria classifica como sendo “uma Igreja ministerial”. Nesse sentido, recordou o árduo caminho que vem sendo trilhado desde a declaração de independência, em junho de 1975, até ao tempo presente, num percurso alicerçado no trabalho e orações de muitos leigos que continuaram a intervir no terreno. “Uma Igreja de leigos que assumem com muita naturalidade a vida cristã”, como acentuou.

“Nem toda a gente tem a possibilidade de partir em missão, mas pode sempre contribuir”

Voltemos ao início desta viagem pela participação da igreja bracarense na paróquia de Santa Cecília de Ocua, na diocese moçambicana de Pemba. Demos o merecido destaque a homens e mulheres que, localmente, consagram uma parte das suas vidas em favor do outro. Todavia, a “missão” também poderá ser realizada nos nossos ambientes e a participação dos leigos poderá assumir diferentes expressões a nível material, dado que, se para a maioria o trabalho efetivo na paróquia de Ocua é uma hipótese de muito difícil concretização, há outras vias de colaboração.

Regressemos de novo a Sara Poças, a responsável do CMAB que nos introduziu neste contexto missionário e que nos salientou que “qualquer possa que queira e faça a formação pode ir até Ocua”, embora reconheça que “nem toda a gente tem essa possibilidade, mas pode sempre colaborar materialmente através de donativos e vários projetos através dos quais as pessoas podem contribuir”. Neste sentido lembra alguns desses projetos como sejam o apadrinhamento de catequistas, a formação de ministros extraordinários da comunhão ou o apoio ao estudo das raparigas. Como nos salientou relativamente a este, “trata-se de um projeto da pastoral social e que é uma das grandes prioridades porque nos apercebemos que as raparigas ficam sempre para segundo plano no que se refere ao estudo. Ao estudarem mais um ano queremos que com isso se autovalorizem porque, como toda a sociedade as puxa para baixo, elas próprias não acreditam que podem ser mais que mães e mulheres que servem os filhos, os maridos, a família.”

A par destes projetos é conferida muita atenção às solicitações que localmente se verificam, dando o exemplo das consequências dos conflitos armados no norte de Moçambique que têm impelido a deslocação de pessoas. Assim, no território da paróquia foram criados dois “reassentamentos”, isto é, “terrenos cedidos pelo Estado para que as pessoas possam reconstruir as suas casas e disporem de uma parte de terreno, a machamba, onde possam cultivar e garantir a sua alimentação. Nesses reassentamentos, embora haja cristãos e muçulmanos, fazemos a assistência espiritual e material para quem quiser. A própria paróquia tem uma grande machamba através da qual procuramos apoiar as pessoas para que tenham melhores colheitas e uma alimentação mais variada.”

As necessidades das populações da paróquia são variadas, merecendo igualmente destaque o aleitamento materno que é muito prejudicado pelas carências alimentares, havendo um projeto que se tem mantido e que procura minorar a desnutrição dos bebés. Trata-se de um investimento para o qual se pretende uma mais ampla participação, pois que, como salientou Sara Poças, “queremos que não seja só abraçado pela diocese, mas também pela sociedade civil.” Lembra ainda outras realizações, como sejam ações de formação com os professores de Educação Moral e Religiosa Católica para que possam aproximar-se do projeto Salama e sensibilizar os alunos.

Em jeito de conclusão

Partir para a missão implica uma forte vontade de se questionar, de colocar entre parêntesis uma vida de conforto e desacomodar-se para, na dádiva ao outro, se realizar. Partindo ao encontro do que não tem resolvidas as suas necessidades básicas e que espera o abraço solidário, mas que também está disponível para ouvir a Palavra, o anúncio de um Deus que a todos ama.

Partir para a missão em territórios longínquos, tanto na distância como no modelo cultural, não está fisicamente ao alcance de cada um de nós, mas a missão pode também ser realizada no apoio que na retaguarda possamos disponibilizar a esses homens e mulheres que ousam partir. Tanto através dos nossos contributos materiais, como pela força da nossa oração, todos e cada um de nós pode, dentro das suas possibilidades, fazer missão.

Reportagem publicada no Jornal O Conquistador de 28 de julho de 2023.

Veja também os vídeos na página do Facebook d' O Conquistador:

Ana Margarida Gomes e Hugo Borges

Sara Poças

Davide Duarte

Pe. Manuel Faria


Download de Ficheiros

Conquistador julho -655leve_pages-to-jpg-0004.jpg

Conquistador julho -655leve_pages-to-jpg-0005.jpg

Conquistador julho -655leve_pages-to-jpg-0006.jpg

Conquistador julho -655leve_pages-to-jpg-0007.jpg